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Pode o culto a Deus se tornar inaceitável?


Reflexões sobre a igreja moderna no contexto mercantil, utilitário e capitalista.


Texto: Isaías, 1.10-17.

Seria possível hoje na atualidade uma igreja se reunir para cantar louvores, realizar orações; recolher ofertas, e prestar adoração. E Deus dizer: - “Eu estou farto de suas músicas, as orações de vocês me enfadam, chega de ofertas, pois elas são inúteis. Na verdade vocês estão realizando uma solenidade, mas eu a odeio”.
No texto em referência, ouve um período em Israel que Deus disse exatamente essas palavras. O culto havia se tornado insuportável.
A grande questão é:- se Deus no passado rejeitou o culto de Judá seu povo escolhido. Não seria possível que hoje também ele esteja rejeitando o culto de várias igrejas?
Acredito que a partir do estudo do texto, poderemos retirar algumas lições de como não devemos proceder com relação ao culto. Para não corrermos o risco de Deus dizer: “Suas festividades eu as odeio, tornaram-se um fardo para mim” (V 4).

Quando o culto a Deus se torna inaceitável?

1. Quando se busca as bênçãos de Deus em detrimento da pessoa dele.

O relacionamento que Judá (Jerusalém) tinha com Deus era meramente utilitário. O grande interesse era apenas o lado material do relacionamento.

Deus não pode ser o meio para nossas realizações mesquinhas, mas infelizmente o objetivo do culto contemporâneo tem sido a ênfase nas realizações materiais, fazendo assim, com que o alvo do culto não seja necessariamente Deus e sim o que ele pode fazer. Estamos realizando um culto mais ao homem do que ao próprio Deus.
Não existe coisa pior do que se relacionar com um amigo por interesses, no que ele pode fazer por nós ou o que vamos lucrar com essa amizade. Mas é exatamente esse tipo de “amizade” que estamos tendo com Jesus.
Aqui não existe qualquer crítica quanto a receber as bênçãos de Deus, o grande problema é quando só vejo Deus por aquilo que ele pode dar e não por aquilo que ele representa.
Essa infinidade de campanhas de prosperidade e bênçãos representa bem o espírito em que estamos vivendo. Até o nome de uma das mais recentes bíblias de estudo indica esse estado de interesses (Bíblia de estudo de batalha espiritual e vitória financeira).
Acredito que o grande desejo do coração de Deus como Pai, è quando os seus filhos vão a sua presença não em busca de dádivas e sim em busca dele. Precisamos mudar de uma teologia mercantilista para uma teologia relacional, expressão esta cunhada por Ricardo Gondim Rodrigues, querendo assim enfatizar essa dimensão de intimidade com o Pai, evidenciando que teologia relacional não tem nada a ver com o Teísmo Aberto (open theism) como querem alguns fundamentalistas.
È interessante notar que Deus possui atributos que lhe conferem pessoalidade, Deus é uma pessoa, que criou a humanidade para se relacionar com ela. Quando falamos de relacionamento é necessário falarmos do Deus encarnado-Jesus. Jesus a despeito de toda censura e crítica dos religiosos, viveu intensamente suas amizades, inclusive com gente de má de fama, gente considerada da pior espécie, pobres e pecadores. Deus está em busca de filhos, de amigos, e não de clientes religiosos.

2. Quando vamos à presença de Deus, e apresentamos diante dele outra pessoa, e não o nosso eu verdadeiro.

O contexto da história que lemos (Isaías) diz que o povo de Judá estava de fato cultuando a Deus, mas estavam usando “máscaras”. Estavam se escondendo atrás de uma religiosidade aparente, era apenas um rótulo.

A primeira coisa que devemos entender, é que: Deus recusa-se a se relacionar com uma máscara, ou seja, ele busca o meu eu verdadeiro.

“Deus é o único que nos vê como realmente nós somos, em nossa intimidade mais profunda e, portanto, conhece-nos de verdade. Uma vez sabedor de nossa real identidade, recusa-se a se relacionar-se com nosso ‘falso eu’, ainda que nosso ‘falso eu’ pareça a nós mesmos o ‘eu verdadeiro’”.
Ed René Kivitz

Quando vamos à presença de Deus, ele está interessado em quem somos de fato, e não naquilo que aparentamos ser. Infelizmente muitos de nós ainda brincamos de “esconde-esconde” com Deus.
Essa foi a grande pergunta feita a Adão, lá no Édem. Pergunta essa de cunho existencial, e não de localização geográfica. “Adão onde está você”? Gênesis 3.9.
Também a mesma pergunta foi feita a Jacó. “Qual é o seu nome”? Gênesis 32.27. Essa pergunta não era apenas, qual é o seu nome, e sim quem é você?
Podemos dizer que o mesmo aconteceu, quando o profeta Samuel foi ungir a Davi como rei de Israel. Porque quando Samuel viu os irmãos de Davi, julgou pelos padrões da estética que algum deles seria o rei, no que Deus lhe disse:- “O Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração” I Samuel 16.7.
Na hora da oração coletiva temos muito disso, apresentamos orações bem feitas, sentenças bem polidas, mas é isso mesmo que somos de fato?
Ouçamos um dos maiores pensadores cristão do século XX:

“Orar é colocar diante de Deus o que está em nós, não o que deveria estar em nós
C S Lewis.

Gosto de um trecho, de um poema de Fernando Pessoa, escrito por um de seus personagens (heterônimo) Álvaro de Campos. E que fala a história de um homem que viveu uma farsa, vejamos um fragmento do Poema a Tabacaria:

Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu...
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era
E não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara
Estava apegada à cara.
Quando a tirei e me vi no espelho,
Já tinha envelhecido.

É triste, mas existem cristãos que acreditam que podem continuar se escondendo de Deus, e pior, pensam que é possível esconder de si mesmo. Vive uma vida de aparências, não passa de uma máscara.

3. Quando vamos a Deus e estamos dispostos a sacrificar tudo, a dar tudo, menos o nosso coração.

O interessante é que esse povo estava oferecendo sacrifícios e ofertas. Estavam realizando o culto de acordo com o ritual. No entanto o coração estava distante de Deus.

O que deve ficar muito claro é que Deus, em primeiro lugar esta interessado em nós, para só depois, aceitar o que podemos oferecer a ele.
Foi exatamente o que aconteceu no episódio entre Caim e Abel, em Gênesis 4.4.

“... Agradou-se o Senhor de Abel e de sua oferta; ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou...”.

Vejamos o que escreveu o Reverendo Caio Fábio, a esse respeito:

“O que a bíblia diz é que Deus se agradou primeiro da pessoa e depois da oferta. Da mesma sorte ele se desagradou primeiro da pessoa e como conseqüência da oferta. A oferta em si não tem e nunca teve nenhum valor espiritual, se divorciada da motivação e da conduta daquele que a faz. Caim talvez pensasse que Deus estava mais preocupado com a oferta do que com a pessoa. Deus chamou a atenção de Caim para a coerência da vida e não para a aparência da oferta”.
Síndrome de Lúcifer
Editora Betânia pg. 45

Penso que essa prática de exigir, que as pessoas contribuam financeiramente com dízimos e ofertas, está muito errada. Pois muitos contribuem por obrigação, outros porque estão fascinados com a idéia de prosperidade fácil. Gostaria de afirmar que se Deus não tiver o coração dessas pessoas, a contribuição delas também não é aceita.
Acredito que aquele que contribui com espontaneidade, sem nenhum tipo de coação, é porque o coração já está em Deus. Ou como disse Jesus:- “Pois onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração”. Mateus 6.21.
Dízimos e ofertas são para aqueles que já entenderam o que é ter um relacionamento de intimidade e compromisso com Deus, e não para aqueles que estão enfeitiçados pela possibilidade de adquirirem prosperidade em troca de seus dízimos.
A questão da adoração deve ser norteada pelo mesmo princípio. Deus não está interessado em adoração, se ele não tiver o coração do adorador.
Devemos ser sinceros e admitir que não exista hora em que somos mais mecânicos na adoração, como na hora do louvor coletivo na igreja. Pois adoramos com palavras, mas, muitas vezes o nosso pensamento esta longe dali, o coração está envolvido com outras preocupações que não tem nada a ver com Deus.
O texto do evangelho de João capítulo 4, não diz que Deus está apenas em busca da adoração em espírito e em verdade. Antes ele está em busca de pessoas que assim o adore, ou seja, ele quer o adorador primeiro, porque a adoração vai ser conseqüência de um relacionamento entre Pai e filhos. “São estes os adoradores que o Pai procura”.

Diante de tudo o que foi exposto, acredito que algumas perguntas devem ser levantadas:

Que tipo de igreja eu e você seremos nesse momento tão único que estamos atravessando?
Que tipo de culto nós prestaremos a Deus?
E esse culto será aceitável?

“A religião (culto) que Deus, nosso Pai, aceita”.

Existe algo que se reveste da maior importância a ser dito, é que dos versículos 10 a 15, Deus está falando através do profeta Isaías de uma espécie de culto que ele (Deus) não tolera, senão vejamos no versículo 15: “Quando vocês estenderem as mãos em oração, esconderei de vocês os meus olhos; mesmo que multipliquem as suas orações, não as escutarei!”.
No entanto, nos versículos 16 e 17. Deus passa a mostrar o que pode deixar o culto agradável: “Aprendam a fazer o bem! Busquem a justiça, acabem com a opressão. Lutem pelos direitos do órfão, defendam a causa da viúva”.
Acredito que quando a bíblia fala de ajudar o próximo, não está falando apenas da obra social como um fim em si mesma. Penso que quando a bíblia trata desse assunto, ela esteja lidando com alguma coisa muito mais profunda, ou seja, os sentimentos e as motivações que me fazem compadecer do próximo. Os sentimentos e as motivações que me levam a ter compaixão pelo meu irmão, servem como indicadores do tipo de religião que eu possuo.
O meio irmão de Jesus, mais conhecido como Tiago, fala no Novo Testamento a respeito da religião, do culto, que Deus aceita, vejamos: “A religião que Deus nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”. Epístola de Tiago 1.27
Não que o cristianismo deve ser reduzido a assistencialismos sociais, não é isso. Mas o grande paradoxo é que só é possível achegar a Deus através do próximo, ou seja, o relacionamento que eu tenho com as pessoas indica o nível de relacionamento que eu tenho com Deus. É impossível viver uma espiritualidade centrada em Deus, que por sua vez não tenha vínculos com o próximo; vejamos nas palavras de João o apóstolo: “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também a seu irmão”. I João 4.19-20. Ou ainda:
“Nisto conhecemos o que é o amor: Jesus Cristo deu a sua vida por nós, e devemos dar a nossa vida por nossos irmãos. Se alguém tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em necessidade, não se compadecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus?”. I João 3.16-18.
Gosto das palavras de Madre Teresa, “O amor não pode ser fim em si mesmo, não teria significado. O amor deve ser posto em ação, e tal ação é serviço [...]. O amor posto em prática é serviço”.
Acredito que a vida só vale a pena ser vivida em função do bem que se fizer ao próximo, porque só é possível servir o criador, servindo a criatura e, só se sobe a Deus descendo aos homens. A grande lição na parábola do bom Samaritano foi exatamente essa: eu possuo um relacionamento com Deus, mais até quanto eu estou disposto a me sacrificar pelo outro? Será que a semelhança do sacerdote e do levita. Estamos tão ocupados com nossos afazeres religiosos que não nos sobra tempo nem para ajudar os menos favorecidos?
O que dizer da injustiça social no Brasil, onde estão as igrejas que eram para ser entidades de justiça? Onde estão os pastores que eram para ser referenciais de doação ao próximo? O problema é que a igreja está tão embriagada por poder, dinheiro e sucesso que ela está se esquecendo do seu principal papel, ser promotora da justiça, e antecipar sinais do reino de Deus. È por essa razão que está se tornando quase impossível ver sinais do reino nas igrejas, mas bendito seja Deus, porquanto ainda é possível ver os sinais do reino de Deus em pessoas.
Quando a bíblia nos fala sobre assistirmos os órfãos e as viúvas em suas necessidades, penso que ela esteja usando um termo genérico, ou seja, os órfãos e viúvas representam os menos favorecidos, ou ainda, representam o ser humano quando estão passando por dificuldades e nem se quer são lembrados. O intrigante é que o profeta Isaías profetizou cerca de 700-680 antes de Cristo, e, no entanto, o que ele falou continua atualíssimo, haja vista o descaso que se tem com os idosos. E o que dizer dos nossos adolescentes que são entregues ao mundo do crime cada vez mais cedo. Alguma coisa está muito errada com uma igreja que não se preocupa com seus “órfãos e suas viúvas”, ou seja, com a sorte dos menos favorecidos.
Gostaria de finalizar com a pergunta que o mestre da lei fez a Jesus na parábola do bom Samaritano: “E quem é o meu próximo?” (para que eu use de misericórdia) Lucas 10.29.
Essa pergunta cabe a cada um de nós respondermos, não apenas com palavras, mas principalmente através da vida.

“Isso fica feliz em ser útil”
João Ferreira Leite Luz

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